o trabalho liberta |
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terça-feira, janeiro 30, 2007
declaração em juízo carlos drummond de andrade peço desculpas de ser o sobrevivente. não por longo tempo, é claro. tranqüilizem-se. mas devo confessar, reconhecer que sou sobrevivente. se é triste/cômico ficar sentado na platéia quando o espetáculo acabou e fecha-se o teatro, mais triste/grotesco é permanecer no palco, ator único, sem papel, quando o público já virou as costas e somente baratas circulam no farelo. reparem: não tenho culpa. não fiz nada para ser sobrevivente. não roguei aos altos poderes que me conservassem tanto tempo. não matei nenhum dos companheiros. se não saí violentamente, se me deixei ficar ficar ficar, foi sem segunda intenção. largaram-me aqui, eis tudo, e lá se foram todos, um a um, sem prevenir, sem me acenar, sem dizer adeus, todos se foram. (houve os que requintaram no silêncio). não me queixo. nem os censuro. decerto não houve propósito de me deixar entregue a mim mesmo, perplexo, desentranhado. não cuidaram que um sobraria. foi isso. tornei, tornaram-me sobre - vivente. se se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi senão em projeto. adiamento. calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo quando em volta viviam quantos! quanto. alguma vez os invejei. outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver, o sobreviver duranvam, perdurando. e me punha a um canto, à espera, contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver. não chegou. digo que não. tudo foram ensaios, testes, ilustrações. a verdadeira vida sorria longe, indecifrável. desisti. recolhi-me cada vez mais, concha, à concha. agora sou sobrevivente. sobrevivente incomoda mais que fantasma. sei a mim mesmo incomodo-me. o reflexo é uma prova feroz. por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me. volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto com exatidão de carteiro que distribui más notícias. o dia todo é dia de verificar o meu fenômeno. estou onde não estão minhas raízes, meu caminho onde sobrei, insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi. tudo confessado, que pena me será aplicada, ou perdão? desconfio nada pode ser feito a meu favor ou contra. nem há técnica de fazer, desfazer o infeito infazível. se sou sobrevivente, sou sobrevivente. cumpre reconhecer-me esta qualidade que finalmente o é. sou o único, entendem? de um grupo muito antigo de que não há memória nas calçadas e nos vídeos. único a permanecer, a dormir, a jantar, a urinar, a tropeçar, até mesmo a sorrir em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio, como neste momento estou sorrindo de ser - delícia? - sobrevivente. é esperar apenas, está bem? que passe o tempo de sobrevivência e tudo se resolve sem escândalo ante a justiça indiferente. acabo de notar, e sem surpresa: não me ouvem no sentido de entender, nem importa que um sobrevivente venha contar seu caso, defender-se ou acusar-se, é tudo a mesma nenhuma coisa, e branca. sexta-feira, janeiro 19, 2007
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